Título no Brasil: As Aventuras de Pi;
Editora: Nova Fronteira;
Tradução: Maria Helena Rouanet;
Revisão: Rachel Rimas;
Revisão: Rachel Rimas;
Gênero: Ficção (?);
Nota (de 0 a 5): 5.
Ter
As Aventuras de Pi em mãos foi um
golpe de sorte. Não deveria ser meu; comprei prum amigo e, quando vi que tinha
em mãos um livro de um filme que queria ver há muito tempo, decidi ficar com
ele e dar um outro ao tal amigo – já que, bem, é uma regrinha básica para a
maioria de nós, leitores, sempre ler o livro antes de ver o filme em que foi
baseado (e eu sigo essa regra feito o chatérrimo bookaholic que sou). E, como
dito: um golpe de sorte. E que sorte.
Pois acabei tendo em mãos um dos melhores livros que li esse ano – e, quem
disse que não?, da minha vida.
As Aventuras de Pi conta
a história, baseada em fatos reais, de Piscine Molitor Patel – que, por razões
inúmeras, rebatiza socialmente a si mesmo como Pi. Um menino inteligente e de
mente aberta, vegetariano, que é ao mesmo tempo cristão, muçulmano e hindu
(sim), descobre que precisa deixar a Índia com seus pais, irmão e animais do
zoológico onde vive em direção ao Canadá para recomeçarem suas vidas. Na viagem
de ida, porém, Pi vê-se num bote com uma hiena, uma zebra, uma orangotango e um
tigre (Richard Parker – sim, esse é o nome do tigre, e o porquê dele ter esse
nome você também vai descobrir), após o assustador naufrágio do navio Tsimtsum. E são sobre os meses – sim: no
plural – que Pi Patel, um jovem sagaz, corajoso e perseverante sobrevive no
meio do oceano que você irá saber. E entender. E, com ele, se aventurar.
No
meio do livro, eu fiquei me perguntando se o título “As Aventuras de Pi” havia
sido realmente uma boa escolha para a tradução do nome original, Life of Pi, no Brasil. O substantivo “aventuras”
me passa uma imagem por demais... Romântica, quando se atribui a uma
trajetória. É levar o leitor imediatamente a pensar em grandes aventuras
mitológicas, sobre um forte, indestrutível e brilhante ser divino à la grega – e foi isso, confesso, que
estupidamente me levei a acreditar. E, consequentemente, estupidamente fui
jogado para fora do que eu acreditava pelo enredo. Pois foi também assim que
foi As Aventuras de Pi, para mim: um
soco na cara e no estômago. Assim como um beliscão na consciência, e em muitas
verdades que eu achava serem sólidas dentro de mim.
A primeira parte do livro é brilhante.
Trata-se basicamente de uma apresentação de Pi, da mentalidade de Pi e da
realidade em que vive; é nesse momento em que o leitor irá conhecer o seu herói.
Como dito, e provavelmente deve ter parecido confuso para quem não leu o livro,
Pi Patel se trata de um menino um tanto diferente: ele se considera de várias religiões.
E é esse o ponto que Yann Martel perfura com maior intensidade e maior foco,
nesta primeira parte da obra, lindamente expressando o que quer expressar sem
parecer um desesperado espiritualizado que quer converter pessoas – não, nem
pense nisso. Sou pessoalmente apaixonado por qualquer coisa que traga
discussões sobre religiões – desde entrevistas na TV a livros especializados no
assunto –, e encontrei nesse livro uma mina simples, nada pedante e preciosa
disso. Preciosa por não querer profetizar, ou dogmatizar, espiritualizar, mas
por esclarecer: pelas palavras de um homem sábio, é descrita toda uma vibrante
discussão sobre essa realidade pessoal de Pi, sua grande quantidade de crenças
religiosas, o porquê dele ser assim, e o
porquê de não ser errado ele ser assim; do porquê todo tipo de crença ter seu
valor e sua beleza, apesar de suas grandes obscuridades, e, principalmente:
como o seu eu cheio de fé e crenças foi uma grande arma para sua sobrevivência.
As Aventuras de Pi é um livro
lindamente universal, verdadeiro e corajoso nesse sentido.
É
então quando o livro parece mudar de tom. A escrita leve, muitíssimo
bem-humorada (o humor inteligente de Yann Martel me arrancou gargalhadas em sua primeira parte) e
descompromissada tomba exatamente quando o navio de Pi Patel também tomba, para
uma escrita mais dura e seca – e o leitor é levado com a história para o fundo
do poço da nova realidade do herói de Martel. Magnífica, essa mudança de tom –
do claro para o negrume, onde a tensão de Pi pode ser sentida na pele, quase
que literalmente de tão real. É aí então que a história de fato começa. E o que
Pi Martel passa em alto oceano, nos meses em que fica perdido... É cruel. Nuamente
desenvolvida ao longo do enredo, as provações de Pi são lancinantes: seu estado
emocional; seu estado físico; seu estado espiritual; seu estado existencial;
seu estado psicológico – tudo, tudo, absolutamente tudo que poderia ser
trabalhado em Pi para descrever a história de um garoto perdido em alto mar é
trabalhado com perfeição – por isso me atrevo com toda a confiança do mundo a definir
Piscine Molitor Patel como um dos mais completos protagonistas que já li.
A
trajetória sofrida de Pi é desenvolvida num universo ironicamente “mínimo”:
simplesmente um bote, uma engenhoca e imensidões verticais e horizontais (um
céu infinito, um horizonte infinito, um oceano infinito). O passo a passo da
sobrevivência nesse “mínimo” é acachapante: ver como Pi compreende sua
realidade, encontra e constrói suas chances de vida e adapta-se inteiramente à
necessidade é incrível, tudo em meio de uma escrita viciante, dinâmica,
inteligente, baseada numa ótima pesquisa e inteira repleta de discussões
relacionadas aos processos de identificação, entendimento, percepção, dentre
outros, de Pi. É também tudo muito cru, seco, quando precisa ser. O que
acontece realmente é dito como acontece,
e isso me chocou algumas vezes – a ponto de me fazer virar o olho das páginas,
tomar um fôlego e só em seguida continuar (claro que isso vai do nível de
sensibilidade de cada um, mas acho que nenhum passaria ileso ao que acontece à
zebra...). Mas mais interessante mesmo é a... Eu ia dizer “amizade”, mas é
tanto mais como menos o que se desenrola entre Pi e seu fiel companheiro,
Richard Parker, o tigre que tem nome de gente. O processo de entendimento,
compreensão, habituação, rotina, sobrevivência de ambos é... Uau. Uau, de fato. E, por favor, um momento
pro derretimento do resenhista: que coisa mais linda, incrível, fofa, fodástica
é Richard Parker?! Esse tigre é LINDO, gente! Pelo amor de Deus!!! Fodástico e
absurdamente metafórico – pode deixar o leitor doido, doidinho da silva, se ele
se permitir pensar sobre todas as metáforas escondidas nas entrelinhas desse
livro.
Ao
final, enfim, é outro fôlego que a escrita toma nos poucos capítulos da
terceira parte do livro – e qualquer informação que eu dê sobre esse fôlego eu
corro o risco de dar spoiler, então
prefiro deixar meu leitor por ele mesmo descobrir o que acontece (apesar de
ser, bem, meio óbvio o principal do desfecho da história). O fim do livro é
feito de uma forma que é bastante satisfatória – mas, bem, só. Fiquei meio em
dúvida se gostei ou não. Se merecia mais poesia, algo mais inebriante...
Mas
isso, um mero milímetro perto de quilômetros de maravilhas, não faria o livro
perder nem um pouco seu brilho. As
Aventuras de Pi é um livro precioso, um achado; uma prosa de ouro, que
merece ser eternizada como um livro inspirador e poderoso. Aliás, por fim, eu
finalmente concordei com o título dado no Brasil: As Aventuras de Pi.
Porque o caráter de divino nessa história existe. Que não pode ser definida de
outra forma além de: um milagre.